As montadoras de automóveis instaladas no Brasil têm, nos últimos anos, batido recordes de vendas. O aumento da renda de parte da população antes excluída do mercado automotivo, aliado ao crédito caro mas farto e a perder de vista, fizeram com que a relação habitantes por veículo seja estimada em menos de 7, contra 9 em 2002. Diversos indícios apontam que as filiais brasileiras das montadoras geraram resultados que, transferidos para as matrizes, nos últimos três ou quatro anos, ajudaram a atravessar a crise nos países desenvolvidos, em que até falências ocorreram.
No entanto, mercados em franco crescimento atraem concorrência. Coreanos e chineses começaram a oferecer produtos com qualidade comparável ou superior aos vendidos no Brasil e mais baratos. Ao mesmo tempo em que o governo brasileiro começava a discutir uma nova política industrial, as montadoras locais apontavam o perigo da concorrência externa para o emprego e para a própria lucratividade. O governo, sensibilizado por estes problemas, definiu uma política governamental para o setor que protege a produção e o emprego local com forte elevação do IPI para as importações, com vistas a favorecer o aumento da atividade local de engenharia e inovação.
As montadoras instaladas no Brasil têm vendido como nunca - recordes de produção e vendas mostram isto - mas temem não ser as principais beneficiárias desse novo mercado. Para tornarem-se mais competitivas, apontam a necessidade de custos menores (de mão de obra, matéria-prima e impostos) e de benefícios fiscais para fazer frente à concorrência, seja a oriunda das importações, seja a dos novos produtores que tem se instalado no Brasil. Mas será possível uma indústria automotiva competitiva, inovadora, que venda produtos de qualidade e baixo preço, preservando empregos e renda local?
As montadoras oferecem, no Brasil, empregos em condições muito melhores do que na China. Assim, empregos de qualidade prejudicariam a competitividade. Mas a solução não está no rebaixamento das condições de trabalho locais. Os empregos no Brasil são muito competitivos, em comparação com os existentes nos países das matrizes das montadoras (Alemanha, França Itália, Estados Unidos e Japão). No Brasil, a geração de valor é muito mais baixa do que nas matrizes. Mesmo os carros chineses que começavam a entrar no país são mais atualizados do ponto de vista tecnológico do que os correspondentes brasileiros. Quem gera empregos melhores deve produzir alto valor. Alto valor, nessa indústria, significa, ao mesmo tempo, projetar produtos melhores, aumentar a capacidade de criar veículos para diversos mercados, consolidar-se como centro de decisão da indústria, como local para se tomar decisões sobre questões estratégicas relativas à tecnologia, produto, fornecedores e produção.
Mas para desenhar uma estratégia de produção de valor, as montadoras localizadas no Brasil precisariam rever o papel que atribuem às subsidiárias locais: de geradoras de lucros – a partir de margens mais altas para proporcionar funding para as matrizes – para produtoras de valor, aproveitando competências locais disponíveis a custos menores do que nas matrizes. Há que se passar também de operadoras locais ou regionais, para operadoras globais: só assim haverá escala para justificar investimentos do porte necessários para essa transformação. Mas isso significa uma decisão difícil: competir consigo mesmas, com as matrizes, deslocando centros de engenharia, gestão de projetos, decisões de negócios etc. Seria isso possível?
A pressão do centro de decisão na matriz é muito forte. O que pode fazer diferença: atratividade (tamanho e renda) do mercado local, competência e custo de uma engenharia qualificada; legislação e atrativos governamentais que atraiam centros de decisão e de engenharia para o país. Mas não nos iludamos: as montadoras globais, com matrizes nos países centrais, estruturam (como vêm fazendo no Brasil) atividades de engenharia e inovação que são deslocadas das matrizes em casos pontuais e específicos. A densidade de inovação tecnológica se configura junto ao centro de decisão. E esse centro não está no Brasil, em nenhum caso.
Com relação à competição no mercado interno: não se trata de limitar as importações. Parece possível compensar a produção local por práticas competitivas externas mas a questão é provocar as montadoras locais para que sejam competitivas em relação ao pacote preço e qualidade oferecido pela concorrência. Isso leva a uma redução de margens de lucro praticadas aqui. E é bom que isso aconteça. A queda da margem de lucro pode ser o maior incentivo para a reação no sentido de redefinir o negócio automotivo no Brasil. O problema é que a inovação no Brasil não faz parte da equação estratégica das montadoras tradicionais, na qual as subsidiárias são apenas uma parte.
Benefícios fiscais podem levar ao rumo certo mas podem também reforçar o rumo errado. Incentivo fiscal só se concede (ou só se deve conceder) a quem fará algo que não faria sem o incentivo e, por isso, gerando mais renda, privada e pública. Não há porque incentivar elementos isolados de inovação como, por exemplo, laboratórios de motores ou de aerodinâmica no Brasil, se isso será pouco usado (porque é marginal em relação à estratégia das empresas nos centros) ou, se estiver alinhado a uma estratégia de localização no Brasil de atividades de engenharia, seria feito de qualquer modo. Se fizer sentido para as montadoras investirem em infraestrutura de inovação no Brasil, isso será feito. Incentivos devem ser vinculados a compromissos de grande alcance, com estratégias e projetos monitoráveis.
Não pode mais a indústria automotiva ignorar o problema central da mobilidade urbana para o desenvolvimento. O automóvel, imbatível em mobilidade, é quase imóvel nos grandes centros. Transitou de solução à problema. Políticas públicas de restrição de uso, de exigência de tecnologias limpas, de efetivo favorecimento do transporte coletivo, de reciclagem, vão se incorporar, mais cedo ou mais tarde, à estratégia do setor. A indústria precisa reinventar o produto – oferecer efetiva mobilidade e não apenas automóveis. A indústria automotiva, no Brasil e no mundo, vive um momento de inflexão. O declínio da demanda nos países desenvolvidos – onde estão as matrizes tradicionais –, a possibilidade do carro elétrico, as novas demandas sociais e ambientais, abrem grandes possibilidades para novos arranjos de operações e de negócios. É preciso capital e ousadia para aproveitar oportunidades. Há lugar para uma indústria competitiva, responsável, global e com centro de decisão no Brasil.
No Brasil, essa indústria pode ainda contribuir com o desenvolvimento – mas a chance dessa contribuição não ocorrer como se espera não é pequena. Há que se integrar essa indústria a uma estratégia nacional ou adiar o problema, oferecendo oxigênio a um modelo em decadência, que clama por mudanças.
Roberto Marx e Mauro Zilbovicius são professores do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP, da Fundação Vanzolini e coordenadores do Laboratório de Estratégias da Mobilidade (MobiLab/Poli/USP)